segunda-feira, 2 de julho de 2012

Marcha da insensatez (Final)





 Por J.R. Guzzo


Há uma face escura e angustiante na escola de pensamento liderada por Bastos, em sua tese não declarada, mas muito clara, segundo a qual a liberdade de expressão se opõe ao direito de defesa. Ela pode ser percebida na comparação que fez entre o mensalão e o julgamento do casal Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, condenados em 2010 por assassinarem a filha dele de 5 anos de idade, em 2008, atirando a menina pela janela do seu apartamento em São Paulo — crime de uma selvageria capaz de causar indignação até dentro das penitenciárias. Bastos adverte sobre o perigo, em seu modo de ver as coisas, de que os réus do mensalão possam ter o mesmo destino do casal Nardoni; tratou-se, segundo ele, de um caso típico de “julgamento que não houve”, pois os meios de comunicação “insuflaram de tal maneira” os ânimos que acabou havendo “um justiçamento” e seu julgamento se tornou “uma farsa”. De novo, aqui, não há uma verdadeira ideia; o que há é a negação dos fatos. Os Nardoni tiveram direito a todos os exames técnicos, laudos e perícias que quiseram. Foram atendidos em todos os seus pedidos para adiar ao máximo o julgamento. Contrataram para defendê-los um dos advogados mais caros e influentes de São Paulo, Roberto Podval — tão caro que pôde pagar as despesas de hospedagem, em hotel cinco-estrelas, de 200 amigos que convidou para o seu casamento na ilha de Capri, em 2011, e tão influente que um deles foi o ministro Toffoli. (Eis o homem aqui, outra vez.)

Ao sustentar que o casal Nardoni foi vítima de um “justiçamento”, Bastos ignora o trabalho do promotor Francisco Cembranelli, cuja peça de acusação é considerada, por consenso, um clássico em matéria de competência e rigor jurídico. Dá a entender que os sete membros do júri foram robôs incapazes de decidir por vontade própria. Mais que tudo, ao sustentar que os assassinos foram condenados pelo noticiário, omite a única causa real da sentença que receberam — o fato de terem matado com as próprias mãos uma criança de 5 anos. Enfim, como fecho de sua visão do mundo, Bastos louvou, num artigo para a Folha de S.Paulo, a máxima segundo a qual “o acusado é sempre um oprimido”. Tais propósitos são apenas um despropósito. Infelizmente, são também admirados e reproduzidos, cada vez mais, por juristas, astros do ambiente universitário, intelec­tuais, artistas, legisladores, lideranças políticas e por aí afora. Suas ações, somadas, colocaram o país numa marcha da insensatez — ao construírem ano após ano, tijolo por tijolo, o triunfo da impunidade na sociedade brasileira de hoje.

O Brasil é um dos poucos países em que homicidas confessos são deixados em liberdade. O jornalista Antonio Pimenta, por exemplo, matou a tiros sua ex-namorada Sandra Gomide, em 2000, e admitiu o crime desde o primeiro momento; só foi para a cadeia onze anos depois, num caso que a defesa conseguiu ir adiando, sem o apoio de um único fato ou motivo lógico, até chegar ao Supremo Tribunal Federal. Homicidas, quando condenados, podem ter o direito de cumprir apenas um sexto da pena. Se não forem presos em flagrante, podem responder em liberdade a seus processos. Autores dos crimes mais cruéis têm direito a cumprir suas penas em prisão aberta ou “liberdade assistida”. Se tiverem menos de 18 anos, criminosos perfeitamente conscientes do que fazem podem matar quantas vezes quiserem, sem receber punição alguma; qualquer sugestão de reduzir esse limite é prontamente denunciada como fascista ou retrógrada pelo pensamento jurídico que se tornou predominante no país. O resultado final dessa convicção de que só poderá haver justiça se houver cada vez mais barreiras entre os criminosos e a cadeia está à vista de todos. O Brasil registra 50 000 homicídios por ano — e menos de 10% chegam a ser julgados um dia.

Nosso ex-ministro da Justiça, porém, acha irrelevante essa aberração. O problema, para ele, não está na impunidade dos criminosos, e sim na imprensa — que fica falando muito do assunto e acaba criando um “clamor popular” contra os réus. Esse clamor popular, naturalmente, tem dois rostos. É bom quando vai a favor das posições defendidas por Bastos e por quem pensa como ele; é chamado, nesse caso, de “opinião pública”. É ruim quando vai contra; é chamado, então, de “linchamento moral”. A impunidade para crimes descritos como “comuns”, e que vão superando fronteiras cada vez mais avançadas em termos de perversidade, é, enfim, só uma parte dessa tragédia. A outra é a impunidade de quem manda no país. Não poderia haver uma ilustração mais chocante dessa realidade do que a cena, há duas semanas, em que a maior liderança política do Brasil, o ex-presidente Lula, se submete a um beija-mão em público perante seu novo herói, o deputado Paulo Maluf — um homem que só pode viver fora da cadeia no Brasil, pois no resto do planeta está sujeito a um mandado internacional de prisão a ser cumprido pela Interpol. É, em suma, o desvario civilizado — tanto mais perigoso por ser camuflado com palavras suaves, apelos por uma “justiça moderna” e desculpas de que a “causa popular” vale mais que a moral comum. Um dos maiores criminalistas que já passaram pelo foro de São Paulo, hoje falecido, costumava dizer que o direito penal oferece apenas duas opções a um advogado. Na primeira, ele se obriga a só aceitar a defesa de um cliente se estiver honestamente convencido de sua inocência. Na segunda, torna-se coautor de crimes. O resto, resumia ele, é apenas filosofia hipócrita para justificar o recebimento de honorários. Há um abismo entre a postura desse velho advogado e a do doutor Márcio. Fica o leitor convidado, aqui, a escolher qual das duas lhe parece mais correta.

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(*) Publicado na edição da Revista Veja desta semana. Esta é a parte final do texto do Guzzo, onde ele tenta resumir como estamos desprovidos de princípios éticos, mesmo entre aqueles onde a ética deveria ser um dever. Vale a pena repetir aqui o parágrafo final quando ele mostra as opçõe de um advogado ético, quando se trata do direito penal. Para este, só há duas alternativas, ou ele está convencido da inocência do réu ou, ao aceitar a causa ele se torna coautor dos seus crimes. Eu fico imaginando, o nosso Tomás Bastos (seria ele descendente do Ramiro Bastos de Ilhéus? Estou doida para escrever sobre Gabriela, mas, cadê o tempo e a saúde?) ganhando 15 milhões para defender o Cachoeira, qual alternativa ele seguiu.

Desculpem o gesto da charge que usei para ilustrar esta parte, mas, penso que merecemos isto. (LP)

2 comentários:

  1. ADOREI A CHARGE, KKKKKKKKKKKKÉ DEMAIS,KKKK

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  2. Este Márcio Thomaz Bastos é um grande picareta a serviço da perpetuação do PT no poder. Como, um senhor que já foi ministro da justiça bem recentemente, agora é defensor de um contraventor? Este senhor também quis enrolar o julgamento dom mensalão, propondo que a maioria dos processos voltasse às instâncias iniciais. É um cacareco de gente. O que mais dizer?

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